O choro
por Rafael Alvarenga

Dentro da envidraçada casa amarela algumas luzes cochilavam. Fora dela, o inverno era o feto frio da noite. E enquanto o vento assobiava entre as frestas e levava consigo a claridade, um certo som provocava a tranquilidade. Gotas eram trazidas pelo vento. E hesitavam acerca do pouso. Repicavam nas persianas. Todavia, ainda assim, Janelas e vidros fechados eram riscados pela água. Nessa vulnerabilidade, interior e exterior ligavam-se pelos olhos. A tv morta na estante, encolhida, cega, reprisava a programação noturna de sempre. Era tarde. Apenas um choro cansativo de recém-nascido esboçava vida. Na casa amarela, nada de retratos portados atrás de vidros. Comportado, o passado assentava-se no passado. Ema embalava o feto já rebento envolvido em uma manta rosa. Sentia frio. Precisava de uma xícara de chá. Porém, preocupava-se com as queixas chorosas da criança. Se ao menos tivesse leite, pensava. Mas de seus seios duros nada de colossal haveria de ser sugado. No máximo algum marmanjo desejaria-os com avidez. Sem problema, o leite do supermercado já estava quente sobre o fogão. Posto então na mamadeira foi confusa a recusa da criança. Seu choro crescia. Enchia os ouvidos. Desbaratava as ações. Penetrava agudo e prolongado na percepção. E entre os intervalos reais, quando aquele feto já rebento tomava fôlego para retornar a tortura do grito, um eco indelével prolongava-se no interior de Ema. O desespero a encaminhava a Deus. Mesmo assim, os gritos voltavam e pareciam penetrar-lhe o ser com toda a tenacidade. Com toda aquela boca estridente e sem dentes. Ema sentia-se oca. Sim, a criança alcançava-lhe o oco do ser. Aqueles berros entravam e saiam da porta de entrada dos ouvidos ao capacho dos pés, sem respeitar a acidez do estômago vazio. Precisava de uma xícara quente de chá. E o tempo desperdiçado com a mamadeira... E a recusa seca daquela ejaculação precoce. Tudo isso era escabroso. A revolta parcial perante aquela indistinta inércia da comunicação, servia então, talvez, de impulso primeiro. Ação que incitava Ema a evacuar de si algo que lhe angustiava. A criança berrava cada vez mais alto e espaçado, formando um eco horripilante. A meiose daquela carne crua e precoce, continuava no choro. Ema precisava falar, cantar, berrar como aquele pequeno ser que parecia apenas saber berrar. Precisava beber uma xícara quente de chá. Precisava desinchar-se. Encontrava-se vazia de si, cheia de ecos refratários. Pensou em ligar a tv. Deixar o grito humano que tinha entre os braços no sofá. Ascender às luzes. Possibilitar aos olhos a visão do vazio do ambiente. Mas Ema ninava a criança com passos a esmo. Rodeava os cômodos em um caminho ambíguo. Enfim entrou no único quarto da casa. Por que aquela estúpida não se calava ou morria, pensou num desejo. Cansou-se daquele falso trabalho idílio. Olhou com ódio os olhos miúdos da criança e apertou-a contra seu peito. Fique quieta! Gritou sem carinho ou afeto, e inconscientemente obstinada a sufocar aquele choro irritante. Entretanto num rápido respirar profundo, deu força à razão. Soltara violentamente a criança na cama. Seu choro cresceu. Porém não enchia o quarto, enchia-lhe o ser oco e inchado pelos gritos que lhe estupravam o corpo virgem dos ouvidos aos pés. Na cama, livre em sua própria incomunicabilidade a criança debatia-se. Ema correu até a porta, trancou-a atrás de si e saiu do quarto. Quase aliviada ligou a tv. Aumentou o volume. A lembrança do choro persistia em riscar-lhe a memória. Tais ações bruscas aqueceram-na. Em detrimento do chá, água gelada era agora ansiada. O frio cessara. O inverno, de toda uma estação, fora parido em uma instantânea descarga de frio. Uma brasa. Era o que se tornara à casa amarela. Uma enorme brasa agora vermelha. Enquanto Ema pensava, sua mãe chegou. Amarela. Quando a via, sempre a imaginava como o legítimo depósito de espermas que era. Trazia na bolsa alguma recompensa pelo trabalho. Na recompensa algum tapa. Entre as pernas o “seu” vermelho. Era assim.
- Onde está sua irmã Ema? Pra que essa tv tão alta? – perguntava enquanto já abaixava o volume do aparelho. – Que choro é esse Ema? Onde está sua irmã? – Entrou no quarto e rápido saiu com sua filha mais nova nos braços. O questionário continuava aos berros: - Por quê você deixou a menina sozinha no quarto Ema? Será que nem pra cuidar da sua irmã você serve? Eu na rua trabalhando até agora e você esquece o seu trabalho, sua idiota.
Ema aumentou o volume da tv. Só aquele aparelho a amparava. Lembrou-se do chá e foi até a cozinha. Colocou água no bule e ascendeu o fogo. A criança, mesmo agora ninada pela mãe, não parava de chorar. Sua mãe precisaria de uma xícara de chá. Ema queria esquecer as duas e fazer o chá como se ainda o quisesse.