Personagem - parte 2
por Aguinaldo Ramos


Família
Há identidades.
Muitos são os espelhos
e sempre encontram Personagem.
Eles, se a cercam,
mostram ousados suas faces
nem todos à sua frente...
Tentam lhe imprimir
uma outra maneira.
Ela se não se reserva
mantém-se em contato com o carinho.
É um tempo de espera:
uma semelhança se forma no ar
(qualquer ar abandonado de um canto)
e a identidade desabrocha
sua grande família
de possibilidades
generosamente
reconhecíveis e amorosas
verdadeiro espalhar-se
de alegrias...
Neste momento
Personagem é acolhida.




Distância
Na visão de Personagem
fome não é questão
necessariamente bem resolvida.
Costuma ser mais atrevida
que o suportável.
Assume importância demais...
Sente na fome o coração dividido.
Um pedaço é assim, paciente,
acompanha a receita
espera um recheio.
Outro é assado
temperado demais
já vem esquentado
prefere em fatias...
Em volta da fome,
mantendo seu gosto,
barreiras sutis.
A fome tem boa embalagem,
por isso o preço é tão alto.
De resto, às vezes,
lhe restam os restos.




Susto
Em contato com a natureza
Personagem se entrega.
Capricha nos detalhes
elabora a postura
sai espontânea a performance.
Sua natureza também é inesperada,
animal.
Percebe-se fronteiriça aos arquétipos.
Mitológica por um átimo,
sua figura é meio humana
meio cósmica,
algo se mistura em sua ética
se toca.
Mescla os corpos e esquece a alma.
Incorpora às vísceras outros sangues
mais rascantes...
Esse gozo
se arrebata, pouco dura...
Banhada em civilizações,
vestida em seu verniz,
mantém-se firme:
a pose.




Receita
Estranho, saber das entranhas...
O que se sabe dos segredos das prisões?
O que são as prisões, senão segredos?
Não são os segredos estranhas prisões
incrustadas nas entranhas do ser?


O que sabe esse ser
esse estranho ser
aprisionado a si mesmo?
Prisões dão engulhos,
pressupõem abcessos,
absurdos excessos de pressão,
são abortos de expressão.
Curtido no encardido interior de suas paredes
Personagem sabe: precisa recriar com seu fogo
a energia aprisionada fora dos muros.
Debruça-se sobre as próprias entranhas,
cozinha os instintos,
busca encontrar ponto de equilíbrio
entre o impulso da explosão
e as paredes da pressão.
A receita exata: fazer da inércia vir a ação,
do desgosto sabedoria,
da paixão compaixão.




Vazio
O acúmulo de vida no tempo
é um volume pesado.
Faz-se fixo
torna-se forte
assume proporções desumanas.
Deixa de ser movente
cria raízes
domina.
Num certo momento Personagem aceita
a impossibilidade de alterar essa massa.
Sente que apenas arranha a casca
não pode mais alcançar suas folhas.
Sua história tem mais poder que a vontade,
é uma presença maciça...
à sombra dessa abundância é que vive.
Só lhe resta a cotidiana costura da ação,
a resistência a cada ponto,
um sempre criar de novas memórias,
uma calma de não pretender se afastar de seu tronco.
Cada ponto passado não seja o último...
Mantém verde a vivência
acrescenta à história
um novo conto.






Personagem é projeto de livro, com 80 fotos jornalísticas recontextualizadas e ressignificadas pelos textos, contando a trajetória de um “personagem”, que, de todos, pode ser qualquer um.

Veja algo mais de Personagem em: http://www.telemar.com.br/museu/expofoto/persona/personabox.html


* Aguinaldo Araújo Ramos foi repórter-fotográfico por quase 30 anos. Palpiteiro, sociólogo e mestrando em História Comparada, IFCS, tem feito alguns investimentos literários (finalista no Prêmio SESC de Literatura 2005) e está orgulhoso de publicar em Palavril.