Sobre a fragilidade do gelo

Houve um tempo em que ele costumava sentar-se à margem da pista, e observava as pessoas patinando, todas agasalhadas, com seus patins arranhando o gelo e formando desenhos uns sobre os outros naquela placa que formava o chão no inverno. Fazia já alguns anos que ele próprio não se entregava àquela distração; preferia assistir, preferia manter-se ali, a observar, a perder-se naquele vai e vem repetitivo, naquela hipnose misturada de patinadores. Casais, crianças, jovens, idosos, aprendizes, experientes, medrosos, ousados, cruzavam-se pra lá e pra cá em um interminável redemoinho, voltas e voltas, como numa orquestra desencontrada, cada um em seu ritmo. Só que uma orquestra silenciosa, preenchida apenas pelo burburinho das vozes. Só que o silêncio do parque era tão opressor no frio que as vozes se perdiam a pouca distância, e a alegria dos patinadores ficava até meio estranha, surda, uma alegria sem som, abafada, uma alegria de um sol se pondo, de algo se desfazendo, se dissolvendo, como o próprio gelo.

Quando ele ouviu o choro da criança, tão fraco como os outros ruídos, foi preenchido por uma sensação ainda sem nome. A lembrança foi se formando em seu espírito e, ao longo dos segundos, naquela insistência do choro, foi se dando o reconhecimento, com a vaga lembrança de uma frase: don't be surprised when a crack in the ice appears under your feet. E os patinadores foram desaparecendo de sua visão, enquanto ele se concentrava em dar nome àquela lembrança.

Virou-se. Tentou reconhecer de onde vinha o choro. Uma moça jovem muito pálida, de cabelos ruivos, ninava um bebê a poucos metros dele, pouco mais à esquerda. Mamma loves her baby; and daddy loves you too.

Lembrava-se agora. Com a totalidade da sensação que aquela música lhe proporcionava desde tempos remotos.

Lembrava-se de como a canção era sombria. De como começava com um choro de criança. De como continuava com a repetição de notas agudas no piano. De como terminava com uma guitarra ameaçadora. De como eram terríveis aqueles dois minutos e meio. De como ele tentava evitar lembrar-se do que a canção dizia - justamente por acreditar. Justamente por concordar.

Virou-se novamente. And the sea may look warm to you, babe. And the sky may look blue. But oh, babe... Ele sentiu uma leve pontada no peito, uma dor aguda de algum tempo atrás.

A mãe, cheia de seus cuidados, nunca seria suficiente. Mesmo aquela moça ruiva, concentrada em consolar o choro do filho. Nem enquanto aquela criança permanecesse criança. Nem quando ela crescesse, e tivesse que enfrentar sozinha a vida. Por enquanto, havia aquele consolo; aquele cuidado. Mas mesmo nessa época, talvez aquela mãe causasse danos ao próprio filho, sem tomar consciência disso. O perigo repousava nas mesmas mãos que acariciavam aquela pele tão nova, que conduziam aqueles passos errantes, que o incentivavam a se alimentar. O perigo repousava nela própria, e em todos ao redor. E quando ele olhasse com mais atenção, repararia, em algum momento de sua vida, como era frágil o solo em que ela se erguia. Como era frágil o solo de todos nós.

Você se engana, e você se enganará sempre. E você percorrerá os caminhos mais perigosos, acreditando ser apenas uma passagem ou uma trilha. E você ainda conservará aquela vaga lembrança dos braços te acolhendo após o choro, mesmo quando eles não estiverem mais lá, mesmo quando nada tiver substituído, que será o momento em que você vai mais precisar. Você, apenas mais uma criança, nos braços de alguém que nunca poderá tornar o caminho mais sólido para você pisar.

Ele se virou novamente, a criança cessara o choro. Enquanto isso, um patinador seguia, de costas, pelo gelo, e afastava-se do grupo. Ele ia devagar e cauteloso, cruzando a massa branca sob seus pés, alternando as passadas, sem reparar na insuficiência da beleza de seus passos.

Quando percebeu as rachaduras, hesitou.

De longe, ele viu. Observava, mas não conseguiu fazer nada. Com a testa franzida, um temor que o paralisou, ele assistia o patinador buscando para onde ir, a que direção seguir, mas era inútil. O gelo se abriu sob ele, sugando-o tão silencioso quanto abruptamente, e no mesmo instante já não se via mais aquele cachecol colorido em meio à paisagem branca. Ele viu ainda os movimentos das braçadas desesperadas. Viu como as pessoas em volta não reparavam, e continuavam sua diversão. Viu como os poucos que se deram conta do ocorrido, apenas olharam para baixo, num movimento resignado, e pararam apenas por um momento, para juntar-se novamente aos outros, ignorando a eventualidade da repetição do acidente.

No segundo seguinte, ele não viu mais o buraco. O patinador que ele acreditara ter caido na água congelante, estava misturado ao grupo, demorou apenas alguns segundos para reconhecê-lo, achá-lo em meio aos inúmeros outros patinadores. A criança repousava à esquerda, no colo da mãe, aquecida e protegida.

E enquanto ele permaneceu ali, tentou afastar de seus pensamentos a súbita certeza de que, acontecesse o que acontecesse, em algum dia, mesmo que ele não estivesse lá para presenciar, cada um daqueles patinadores seria sugado por um rachar do gelo. Cada uma daquelas pessoas se surpreenderia com o vão surgindo sob seus pés, apesar de que ninguém em volta tomaria conhecimento. Cada um deles. Todos eles. Ele, inclusive. E sentiria o frio percorrer-lhe a espinha até retirar-lhe a vida, mesmo após tantas voltas naquela pista que parecia apenas um divertimento banal de inverno de todos os anos.

Sheila Louzada

1 Comments:

At julho 18, 2006 9:10 PM, Anonymous Anônimo said...

Que texto lindo. Não tive tempo de terminar de lê-lo porque eu estou com uma puta dor de cabeça. Mas amanhã vou l^-elo com calma e lhe darei uma análise completa do que eu acho. De antemão, seu texto tem traços estilísticos de Clarice Lispector. Depois comento melhor. Eu precisavva te dizer alguma coisa memso que eu nã tenha conseguido terminar ainda. Esse tetxo mexeu muito comigo. Quero ler com concentração e rigor. Maldita dor de cabeça! Amanhã terás uma análise dele!

 

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