A TARDE

por Diogo Henriques


Até poderia ser uma tarde de angariar praia e cerveja. Mas a descida da feirinha aglutinava uma multidão que não desempenhava papel. Sim, podíamos constatar o suor no rosto da garota grávida parada, escorando-se ao um poste na esquina da quadra; lá dentro, o calor era maior. Senhoras podiam ser vistas com seus netos e velhos caquéticos de trinta anos rastejavam rapidamente exibindo sorrisos rugos. Achava-se ali, por volta do meio-dia, os tropeçados e também os caídos. A boca continua aberta. A praia devia estar lotada e feliz. Aqui estamos numa cadeia montanhosa que a gente sem oportunidade do início do século passado foi viver. Agora era uma das mais perigosas e miseráveis comunidades e respondia pelo nome favela.


O DENUNCIADOR

- X9 vai morrer, X9 vai morrer...- as crianças subiam saltitantes pela viela cantando.
Ah, e eu que vos chego, sou um homem qualquer, já passei por esse suplício. Eles ainda vão brincar muito com esse rapaz que está preso ridiculamente com fita crepe. Poder se soltar ele até pode, mas por quê? Ficar lamentando uma morte mais leve, implorar para deixar sua mãe chegar, conversar um pouquinho com ele antes da sua morte; pegar na mão, rezar o pai-nosso com ela, é o melhor que ele pode fazer, e o cabível.


NOSSO PÚBLICO

Não é mesmo uma multidão, é um montículo de gente, os mais afastados com certeza são os que estão pancados. Um único cigarro de maconha aceso; estalando as sementes a cada gigantesca baforada puxada. Era Neco, empunhando uma gasta e simples pistola. Baforrava também. Ele que vai matar o X9. Eu aqui cheguei foi de Blaizer, largado pelos vermes, depois de apontar quem eu apontei. Traí e fui traído. Com dois tiros para cima a arma foi entregue à cabeceira de um palanque, usado no baile. Neco então se deixou desarmado. Pareceu menos jagunço. Sentou. Moreno um pouco magro, metro e setenta, boné da Nike na cabeça. Uma morena linda saiu do público e pousou na sua coxa. Encostou os lábios no conhaque e aquietou-se. E o mundo ficou em silêncio por muitos minutos.


DEJA VU ou REWIND?

O som da cachoeira, o quintal da minha casa! Eu cresci junto ao rio e amei ainda mais a minha liberdade quando saí de cadeia. Cinco anos pegado. Eu não ia ficar de novo não. De tanto lembrar da minha vida solta quando estava preso e tanto lembrar da minha vida presa quando estive de novo solto, apelidaram-me de Passado. E eu morri querendo um banho na cachoeira natal. Passei suplício, mas não supliquei, não senhor. O Neco devia-me uns favores. É claro que me matou. Aqui no morro ou é queimado ou é esquartejado. Eu pedi pra ser esquartejado, pois sabia que se morre mais rápido dessa forma, e ele atendeu, graças a Deus. De qualquer forma nos meus últimos segundos de vida eu já delirava alucinadamente. Faz uns tempos isso. Que eu morri.



VEREDICTO

Num levante o carrasco saiu do seu estado de imobilidade e com um movimento ágil e vigoroso raspou o cano da Imbel no chão da quadra criando fagulha e despertando o formigamento dos horríveis pedintes de carnificina. O cochicho cabuloso de geral, nosso público presente, era de um terror de manchar com sangue o dia lindo.
- Vai lamber em fogo – um disse.
- Safado – em fúria um outro.


A MÃE E O FOGO

A mãe chegou em prantos. Desde a entrada foi caminhando de joelhos até o filho padecente. Ao filho nunca faltou muito até. E ele tão arredio, sempre preferiu perambular, ficar dormindo nas ruas. Cheirando cola. O nome do moleque era Wellington Amaral da Silva. Wellington já estava todo babado, os olhos vermelhos e o corpo vergado de tanto chorar.
Veio Neco, o fogo, e Wellington ardeu com cachaça.
- Quero eu saber de simpático, filho-de-uma-puta – disse Neco olhando para o X9.
- Arde! – gritou.
Por instantes essa mulher próxima ao corpo que tremulava parvidamente esqueceu seu aniversário. Será hoje seu aniversário? – pensou. Wellington queimará durante o tempo que ela o velar.


NECO

A cocaína que brotava na dobra da nota de um real reluziu e conduziu Neco de volta para a boca, de volta para sua pistola. Sua vontade sempre foi ser caçador. Matador de homens. Sim, pensava, o peito inchado, eu sou o tenente dessa porra. Tenente é maior que coronel. Eu sou tenente dessa porra, disse só para si. Lábio molhado de conhaque. Mãos cheirando a cachaça.

1 Comments:

At novembro 10, 2006 8:35 AM, Anonymous Anônimo said...

Merece leitura carinhosa.
Eu volto!
Maristela T.

 

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