A Poética Nordestina de Ascenso Ferreira - Parte final
Por Gilfrancisco

Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira é uma erupção direta do Nordeste, no Modernismo brasileiro. Seus poemas são verdadeiras rapsódias nordestinas, onde se espalha fielmente a alma ora brincalhona, ora pungentemente, no dizer do amigo, Manuel Bandeira. São poemas, são fala e canto, cuja unidade das composições proclamam a autenticidade de que também é feita a Poesia.
O poeta pernambucano se chamava, na verdade, Aníbal Torres. órfão do pai aos 6 anos, morto num trágico acidente, vitimado por uma queda do cavalo quando participava das festividades da cavalhada, teve em sua mãe, uma professora primária abolicionista, sua primeira mestra. Aos 13 já trabalhava no comércio na loja do padrinho, onde teve contato com viajantes e suas estórias, muito de sua infância estão em memoráveis poetas como em “Minha Escola”. Levado por um tio senador, vai para o Recife, onde se torna escriturário do Tesouro do Estado, em 1919.
O sentimento poético desabrocha nessa época, quando inicia a compor sonetos, baladas e madrigais, na pior tradição parnasiana, que reuniu em um pequeno livro “Eu Voltarei ao Sol da Primavera”, republicado em 1985 pelo governo do Estado de Pernambuco. Mas influenciado pelo espírito materialista do fim do século XIX, foram marcantes na sua formação. Daí ter idealizado escrever um poema cujo tema era uma nova revolta de anjos, para destronamento de Jeová.
Referindo-se a sua crença religiosa, quando argüido no “Testamento de uma Geração” de Edgard Cavalheiro, 1944, diz o seguinte: “Para ser sincero, devo confessar que ora acredito ora desacredito, o que não me priva de possui um grande sentimento de admiração por toda fé sincera e desinteressada. Acredito num mundo melhor, que virá fatalmente após este sacrifício tremendo em que se debate a civilização em luta contra a tirania, pois a árvore da liberdade sempre floresceu regada por sangue e lágrima. A verdade tem sido uma norma inquebrantável que aos meus destinos tracei”.
Em 1917, com apenas 22 anos de idade, numa atitude radical, o poeta inexplicavelmente resolve mudar o nome de registro para Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira. Ascenso era o nome do avô materno e Ferreira reverencia o sobrenome da mãe. Em 1928 Ascenso trava um conhecimento pessoal com o autor da Paulicéia Desvairada e no ano seguinte se aproxima de vários intelectuais paulistas, como Cassiano Ricardo, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Anita Malfatti e Afonso Arinos.
Em 1945, Ascenso abandona a mulher, Stella, com quem se casaria em 1921, para viver em companhia de uma adolescente, Maria de Lourdes Medeiros, abrindo um novo divisor de águas em sua vida. Em 1951, o poeta fez sua quarta viagem ao Sudeste para o lançamento de seus poemas. Quatro anos depois quando participa ativamente da campanha de Juscelino Kubitschek para a presidência da República, a dupla identidade de Ascenso Ferreira já está inteiramente à mostra. Apesar da experiência modernista e de toda a consagração que mereceu, ele ainda é visto, essencialmente, como um poeta folclórico, pecha preconceituosa de que jamais se livrará.
Sua estréia no Rio de Janeiro, merece de Medeiros e Albuquerque, do Jornal do Comércio, uma crítica feroz em que destruía o “Catimbó”. Em contra partida, o livro mereceu de João Ribeiro, Manuel Bandeira, Nestor Vitor, Peregrino Junior, José Vieira, Álvaro Moreira, Carlos Dias Fernandes e Tristão de Athaide, louvores sem restrições. Dez anos depois, Ascenso Ferreira volta ao Rio e São Paulo levando seu novo livro Cana Caiana, onde o ambiente foi o mesmo acolhedor de outrora.
Catimbó, significa feitiço, coisa-feita, muamba, canjerê e também o conjunto de regras e cerimônias a que se obedece durante a feitura do encanto. Foi com este título, “Catimbó” que Ascenso Ferreira, torna-se um dos poetas mais expressivos no movimento modernista no nordeste. Mário de Andrade, escrevendo ao Diário Nacional, de 1927, a respeito do lançamento do livro Catimbó reconhecia que “só mesmo Ascenso Ferreira com este Catimbó trouxe pro modernismo uma originalidade real, um ritmo verdadeiramente novo”. “Catimbó é um poema do norte que aderiu à estética paulista e aderiu com vigor próprio e originalidade, buscando as fontes tradicionais do nosso povo”. Assim começa o pequeno artigo de João Ribeiro, publicado no Jornal do Brasil, em 11 de janeiro de 1928.
Catimbó e Cana Caiana, são duas obras importantes de primorosa poesia, e que ganhariam muito em ser gravadas pelo próprio autor, por quanto muitos de seus ritmos escapam aos ouvidos sulinos. É bem verdade que desde 1922, escrevia poemas de acentuada vinculação com o folclore. Ascenso canta com saudade o mundo que morre nos engenhos, substituído pela algidez da usina moderna. A lembrança da meninice junta-se ao sensualismo do branco senhor em relação às mulatas e ao senso de humor que surpreende no povo. Em tudo isso, perpassa o orgulho de nascer e viver na região nordestina, que haveria de prevalecer sobre as influências dos modernistas e remeter o poeta ao regionalismo do grupo pernambucano.
Com técnica erudita se alia a perfeita compreensão dos ritmos populares, ao humor do homem vivido e maduro se junta a ingenuidade e o sentimentalismo do caboclo, tudo numa conjunção espontânea de homogeneidade bem característica desse Brasil que se funde numa harmonia de regionalismo a completarem e enriquecerem alguns denominadores comuns extremamente sólidos. Rica por sua musicalidade, fortalecida pela liberdade de versificação, sem recuar a rima; rítmica como a linguagem do povo, sua obra...... Ou como diria Manuel Bandeira: “quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas”.


Maracatu

Zabumbas de bombos,
Estouros de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...
Loanda, Loanda, aonde estás?
Loanda, Loanda, onde estás?
As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queixares e dentes
De maracajás...
Loanda, Loanda, aonde estás?
Loanda, Loanda, aonde estás?
A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...
Loanda, Loanda, aonde estou?
Loanda, Loanda, aonde estou?

(Poema musicado por Alceu Valença LP, Cavalo de Pau, 1982)
Leia a primeira parte do ensaio na edição anterior .
* Gilfrancisco é jornalista, pesquisador e professor universitário