As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
por Marcos Fiuza

As literaturas africanas de língua portuguesa, pouco conhecidas dos leitores brasileiros, são o reflexo da identidade dos países colonizados em África. Com pouquíssimas publicações no Brasil, é difícil encontrar livros de literatura africana em livrarias e bibliotecas não-especializadas, tornando seu estudo uma tarefa árdua, Sem contar com a juventude desta literatura que impede a existência de um número satisfatório de textos teóricos sobre o assunto. Esta literatura é particularmente diferente da maioria das literaturas mundiais. Onde não se imaginava ser possível a criação artística, ela surge, primeiramente, como um foco de luta contra a opressão externa, cantando a África de dentro para fora e não com um olhar preconceituosamente externo, de colonizador para colonizado. A arte surge dentro de um campo aparentemente infértil para a criação artística, mas que nos mostra o poder e a força transformadora que ela proporciona, Dentre todos os momentos pelo qual passaram as literaturas africanas, eu destaco dois que são, para mim, os mais belos e emocionantes.

Em um primeiro momento vemos uma literatura voltada para a valorização do negro pelo negro. Há a tentativa de evidenciar aspectos culturais próprios da África, negando o colonizador em todos os seus aspectos, seja física e/ou culturalmente. Assim, neste período, décadas de 1940 e 1950, podemos apreciar belos versos, recheados de emoção e sinceridade, sendo os primeiros gritos libertários africanos. Uma genuína literatura africana inicia-se ali, desvinculando-se de uma literatura “mimética” ao modelo português, imposta pelo colonizador. Então, como mostram os versos da moçambicana Noémia de Souza, temos a temática do negro e do afastamento ideológico do opressor como focos privilegiados da poesia. O belo passa a ser o telúrio, a cultura africana, mostrando como a distorção ideológica do colonizador traz a falsa identidade ao povo, Cito este trecho para melhor ilustrar:

"Negra
Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos

quiseram cantar teus encantos

para elas só de mistérios profundos,

de delírios e feitiçarias...

Teus encantos profundos de África.

(...)

E ainda bem.

Ainda bem que nos deixaram a nós,

do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,

sofrimento,

a glória única e sentida de te cantar

com emoção verdadeira e radical,

a glória comovida de cantar, toda amassada,

moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE"


Alguns anos mais tarde, nos idos das décadas de 1960 e 1970, encontramos uma literatura mais madura, porém recheada também de emoção e revolta. Este período é marcado pelo início da luta armada em Angola e uma forte postura de engajamento político da maioria dos autores. Neste período, a poesia é o reflexo do inconformismo que pairava nos países africanos. Não satisfeitos com a atual situação imposta pelo jugo salazarista, a poesia passa a ser um veículo de mobilização do africano contra o opressor português. Com isso, os poemas são caracterizados por conter um discurso panfletário e emotivo. É um período que antecede a revolução pró-independência de 1975, em que a literatura e a política misturam-se, muitas vezes confundindo-se. As poesias são claramente um mecanismo de “chamamento” do povo para a luta armada, mostrando claramente que o objetivo a ser atingido é o combate ao modelo colonial, daí a literatura deste período ser chamada de “literatura de combate”, “literatura de protesto” ou “poesia necessária”. Assim, para melhor esclarecer esses aspectos, nada melhor que lermos. Cito versos do poeta angolano Manuel Rui, ícone desta geração:


"Poesia necessária

De palavras novas também se faz país

neste país tão feito de poemas

que a produção e tudo a semear

terá de ser cantado noutro ciclo.
(...)
Proponho-me um verso novo

para a guelra do peixe sem contar
para a abundância da carne
e a liberdade das aves desenhada

dos campos

e das fábricas

(...)
"

Com estas pequenas considerações, tentei trazer um pouco de um mundo vasto e desconhecido. A partir da leitura de poemas africanos, podemos entender mais sobre a história e a evolução ideológica dos países africanos colonizados por Portugal, além da deliciosa aventura que é saborear esses poemas, que trazem não só o engenho, mas também toda a carga emocional africana.


Marcos Fiuza
Poeta, professor e pós-graduando em Literatura portuguesa e literaturas africanas de língua portuguesa - UFRJ

mvfiuza@yahoo.com.br

1 Comments:

At maio 17, 2006 12:06 PM, Anonymous Anônimo said...

Sinta-se sempre um intelectual transformador! Vc não ,imagina, ou melhor, vc sabe sim, que tipos de sentimentos vc desperta nas pessoas quando dá esse tipo de contribuição...Revista, sala de aula, filosofando no bar...enfim, vivenciar tudo isso é um pouco do q todos nós queremos e precisamos! Um abraço da amiga Ana Kau

 

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