Contaria



Compra noturna
por Rafael Alvarenga

Chovia. A umidade murchava o acúmulo de poeira adormecida nas saliências do cimento velho. Os fios elétricos ziguezagueavam no alto da viela. No chão as manchas de luz irregulares pareciam pinceladas turvas. As marquises cansadas ameaçavam desabar em sono profundo. Eu caminhava sob elas em busca de carne feminina. E não longe, nos cruzamentos das vielas, multiplicavam-se mulheres seminuas, arrepiadas pelo vento gélido, fumantes de cigarros companheiros e/ou aquecedores. Na contínua lentidão da caminhada bastava escolher o recheio de uma mini-saia qualquer. Talvez a vermelha. Certamente a vermelha. De fato tudo é já sabido. Não se diz “oi”, cobram-se oitenta e fecha-se um negócio para abrir outro. A porta do motel parecia encolher-se receando poças sujas transbordantes que se aglomeravam nos cantos. Entramos, subimos uma escada que já desabou de velhice e embora reerguida ainda gritava como se sentisse o peso de nossos pés. A economia de luz encontrava sustento desculposo na suposta criação de um clima vulgar. Antes de adentramos no corredor que levava aos quartos, alguém recebeu o pagamento do trabalho do recheio da mini-saia vermelha e o valor do provável cubículo que havia de sustentar o ato. Alguém “essa” capaz de causar uma excitante atração. Entretanto alguém que apenas vendia ou recebia o pagamento do trabalho de outros “alguéns”. Desta vez as sílabas invertem-se, e o hábito de ouvir ali a pronuncia do “oitenta”, afoga a intenção minha, que ouve um “oi” quase estúpido daquela balconista-recepcionista. Retirei então, as cédulas da carteira e recebi o chamado apressado e gemido do recheio da mini-saia vermelha. Na parede, um quadro acima da cabeça da balconista- recepcionista, tinha a seguinte inscrição: “Fiado é em casa que se pede”. Recebi a chave e o troco. O segundo, posto de volta entre as duas tiras de couro da carteira, e mais o obrigado cuspido, foram mastigados pela gula que engolia a realidade e acompanhava as ondulações vivas do tecido vermelho pelo corredor. Diante da porta do quarto o sete pregado sovertia-se na ferrugem. Na fechadura a chave desencadeava a abertura da volúpia. Fechada a porta, acesa a luz envelhecida do abajur, criavam-se sombras esdrúxulas confundidas com a sujeira. A pouca roupa da mulher escorregava pelo corpo oleoso. Dois seios estriados precipitavam-se sobre meus olhos, a carne frouxa, bambeava sem a compressão das tiras vermelhas, porém ainda tentava ser sedutora. A mulher circulava, ondulava-se, rebolava sem música num ritmo inefável. Era vaga e desinteressante. Sua carne tremia naquele vai-vem. Ela falava, apertava, pedia; quase gritava, mas não havia necessidade para tanto. Não havia dor e quase não havia prazer, apenas o fim iminente. Persistia o trabalho, a cama rangia; até o vai-vem confundir-se com tiros. A mulher paralisou-se. Interrogou-se, não me interrogou. Continuava a chover. Alguém bateu na porta, ouvíamos gritos. A preocupação da mulher foi tão grande que o quase prazer parecia não ter existido. Ela tentou vestir-se ou trapacear-me; insistia em sair. Eu a segurei cravando com força ofegante os dedos grossos nos seus braços. Exigia o prazer já pago. Medimos força, quebramos o abajur; entretanto a luz não se apagou. A mulher gritava, eu rasgava a mini-saia vermelha. Queria prazer! A lâmpada de baixo da cama escurecia o quarto deixando-o cada vez mais nu. Meus socos provocavam pânico. Os gritos e o choro de dentro do quarto escapavam e confundiam-se com os do corredor. Por um instante tudo era excitante e igual. Alguém forçava a porta. Eu forçava a mulher que amanhã vestiria uma mini-saia branca, prateada ou azul. A vermelha jazia rasgada em tiras pelo escuro do quarto. Enquanto a porta foi arrombada algo foi deixado com prazer no recheio da mini-saia vermelha. De súbito fui acertado na nuca. O desmaio foi inevitável.

_E isso é tudo que você sabe? – perguntou-me o delegado.
Eu limitei-me a balançar afirmativamente a cabeça.
_Bem, - continuou a autoridade - o segurança do puteiro, no qual o senhor se divertia, relatou uma briga com uma gravidade muito maior. Isso gera uma queixa. Mas na verdade eles é que tem que se explicar melhor, o caso está muito mal contado.
Aproveitando as palavras do delegado, tentei me explicar.
_Não, houve sim uma pequena discussão. Eu mesmo aqui já lhe disse. Mas nada que possa ser relevante. Como ela não queria terminar o serviço eu realmente me irritei. Ele após ouvir o meu relato, confortavelmente sentado em sua cadeira, inclinou-se para frente cruzando os braços sobre a mesa e contou-me o caso:
_É, o caso parece ter sido um assalto seguido de homicídio, mas todo esse emaranhado tem problemas. Primeiro a “balconista-recepcionista”, como o senhor dizia, chamava-se dona Eva. Ela era uma mulher que sobrevivia através de uma prática ilegal: Explorava o trabalho daquelas prostitutas. Dos oitenta reais cobrados, vinte eram pelo aluguel do quarto, enquanto os outros sessenta eram divididos entre dona Eva e a prostituta. A mulher que lhe prestou os serviços chama-se Valéria, a qual envolvia-se nas horas vagas com um dos dois seguranças, o Roberto mais conhecido como “Bebeto”. – o delegado volta às costas para o encosto da cadeira e continua – Alguém entrou para assaltar a caixa registradora da dona Eva, ela resistiu e levou três tiros. O mais intrigante de tudo isso é o desaparecimento repentino e pertinente, a meu ver, dos dois seguranças no momento do assalto. Eles disseram que estavam no banheiro, os dois.
_Bom, então eu estou dispensado? –Perguntei levantando
_Sim, sim. –disse o delegado. – Se precisarmos de você novamente será avisado. Mas por enquanto é só. Afinal não acredito que a queixa da prostituta vá mesmo ser oficializada.
Eu saí lentamente com um leve incômodo na nuca. Precisava de um trago para dormir. Talvez dois. Ainda chovia.

1 Comments:

At setembro 03, 2006 6:34 PM, Anonymous Anônimo said...

acho que já li...rs
bj.Rachel

 

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