Literatudo



ENUNCIADO X ENUNCIAÇÃO
por Marcos Fiúza

Ao analisar as estruturas que norteiam as produções romanescas contemporâneas, percebemos que elementos garantidores de um eixo fixo e linear das narrativas aparecem borrados. Narrador, personagem, tempo e espaço não são mais entes bem definidos e delineados. Encontramos narradores que não têm o que “contar”, uma cronologia não-linear que mistura tempo passado e tempo presente, num revolver psíquico inebriante, em que não há alusões espaciais.
Dessa forma, percebemos que o enredo passa a ser um elemento secundário, pois uma “historinha” bem contada, com seus “fatos” bem encadeados, trazendo uma lógica retilínea de causa e efeito não são mais importantes. É a partir disto que entendemos a dificuldade que encontramos em ler romances contemporâneos, pois contrariamente às narrativas tradicionais, não encontramos um “princípio, meio e fim”. A leitura torna-se pesada para um leitor desavisado, já que, com a ausência de fatos, o romance irá ater-se ao ato. É nesse ponto que gostaria de amarrar minhas considerações.
Entendemos fatos como o conjunto de acontecimentos narrados pelo narrador, que, tradicionalmente, trazem o bojo ficcional e a lógica da obra. São os diálogos, as brigas, as intrigas, os acidentes, os crimes, os amores etc. Já o ato é o “narrar”, o “contar”. É o fato em produção. Literariamente, ao fato chamamos de ENUNCIADO e ao ato, ENUNCIAÇÃO. Se a narrativa contemporânea tende a valorizar mais a enunciação, facilmente entendemos o porquê de sua dificuldade de compreensão. Para melhor entendermos, exemplos mostram-se mais elucidativos que simples palavras. Pensemos em um romance tradicional, com uma estrutura fixa e linear. Esse tipo de narrativa é facilmente encontrada nos romances do século XIX. Tomemos um “clássico” da literatura romântica, vastamente conhecido como A moreninha de Joaquim Manuel de Macedo. Sem entrarmos no mérito de classificação em “bom” ou “ruim”, vemos que esta obra se estrutura linearmente, com fatos bem encadeados, em que um acontecimento é causa do outro. A história, bem simplificadamente, é de uma menina de quinze anos que desperta a cobiça de um jovem rapaz. Este, aposta com seus amigos que irá conquistar a jovem. A partir daí muitos personagens e acontecimentos desencadeiam indo culminar em um “belo e lindo final”. Bom, vemos fatos e mais fatos e mais fatos, que prendem nossa atenção e nos faz querer saber o que vai acontecer. É uma relação de causa e efeito. Algo acontece e acarreta em outro acontecimento. O enunciado é o mais importante. Agora peguemos um romance que não valoriza o enunciado e sim a enunciação. Para tal, nada melhor que Clarice Lispector. A paixão segundo GH., um de seus livros mais famosos e polêmicos. A pergunta é: qual a história do livro? Simples. Uma mulher que na ausência da empregada vai arrumar um cômodo da casa e encontra uma barata e a come. Ué? Só isso? Sim, só isso. Então como explicar um livro inteiro com essa história? É a partir daí que vemos como uma valorização da enunciação se mostra. A narrativa passa-se em um tempo cronológico pequeno e definido, porém a “viagem” psicológica do narrador é elástica. Vemos muita enunciação e pouco enunciado. A leitura torna-se difícil a partir do momento em que o leitor busca referências lógicas, pautadas em noções retilíneas de espaço e tempo e não encontra. Acontecimentos que expliquem outros acontecimentos não existem, quebrando com a lógica de causa e efeito.
Não querendo alongar-me mais, posso dizer que isto é uma constante nos romances contemporâneos, sendo reflexo da modernidade, que trouxe outras concepções de mundo, mudando o olhar do homem. Mas isto é uma outra história que aqui, neste espaço, não posso dar continuidade. Talvez no próximo ou quem sabe no outro, ou no outro...

* Marcos Fiuza - Poeta, professor e pós-graduando em Literatura portuguesa e literaturas africanas de língua portuguesa - UFRJ mvfiuza@yahoo.com.br