O povo. A carne.
Por Marcos Fiuza

Gostaria de, mais uma vez, trazer a África para o foco de discussão e, neste texto, pretendo identificar junto às obras literárias apresentadas, pontos que caracterizem o movimento da Negritude, assim como, a partir de pequenas considerações, entender o processo que desencadeou este movimento. Trabalharei com uma obra do período e uma obra contemporânea, com intuito de explicitar as características e a temática de ambos, comparando-as e destacando suas semelhanças.
O negro que se viu, durante séculos, explorado, humilhado, e desumanizado por parte da sociedade ocidental branca, tida como superior, inicia um processo de ruptura com tais paradigmas, em que buscam a valorização do negro, a conscientização de seu papel fundamental como ser humano dentro da sociedade, tendo a sua terra, sua cultura, e seu intelecto como focos centrais de suas obras reivindicatórias.
Esse processo de ruptura, que posteriormente transformou-se em um movimento, chamou-se Negritude , e teve como base irradiadora as Américas (décadas de 1920-1940 aproximadamente), tendo os EUA como origem provável, passando pelo Haiti, seguindo seu caminho até a Europa, manifestando-se na Inglaterra para firmar-se, enfim, na França, em Paris, no Quartier Latin. A partir daí alastra-se, cobrindo toda a África negra e os negros em diáspora, isto é, as Américas.
Na literatura, esses elementos de valorização da cultura negra são transpostos de diversas formas, tanto negando a literatura do colonizador, como introduzindo, nas obras, signos lingüísticos próprios, e elementos que identifiquem a terra. Restringindo-se à poesia, para melhor entender esse contexto, é interessante analisar alguns pontos de um poema deste período, da moçambicana Noémia de Souza.

Deixa passar o meu povo

Noite morna de Moçambique
e sons longínquos de marimba chegam até mim
-certos e constantes-
vindos nem eu sei donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rádio e deixo-me embalar...
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Marian cantam para mim
Spirituals negros de Harlem.
<>
- oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo -,
dizem.
E eu abro os olhos e já não posso dormir.
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
<>

Nervosamente,
sento-me à mesa e escrevo...
(dentro de mim,
deixa passar o meu povo,
<>)
E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com sua voz profunda – minha irmã.

Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do mesmo sangue da mesma seiva amada de Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodais, e meu inesquecível companheiro branco,
e Zé – meu irmão – e Saul,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
Enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
-<>.
oh let my people go.

E enquanto me vierem de Harlem
vozes de lamentação
e os meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insônia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
<>
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO.

(Apud:FERREIRA, Manuel. No Reino de Caliban III,3.ed., 1985)


Percebemos que o texto é, em primeiro lugar, uma negação ao estilo português de poesia, não contendo métrica, nem rimas, dando um ritmo particular ao poema, em que constatamos um tom de oratória à poesia. Encontramos também, na obra, elementos característicos, típicos de Moçambique, como a “marimba” (v-2), e “casa de madeira e zinco” (v-5), sendo estas, moradias típicas da classe popular de Moçambique, introduzindo assim, também, elementos que denunciam as diferenças sociais existentes.
Há, no texto, um forte apelo emocional, que procura sensibilizar e comover o leitor, pedindo voz para seu povo, que o permita se expressar (“oh deixa passar o meu povo” v-11). Elementos da cultura africana são colocados no poema, em que a família é representada de forma a denunciar a exploração do colonizador (“Minha mãe de mãos rudes e rosto cansado/ e revoltas, dores, humilhações” v-29,30).
Vemos que a autora busca uma identificação com os negros americanos, encontrando uma identidade na música negra americana, em que seus cantos e lamentações congruem com o contexto moçambicano de luta e sofrimento(“Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos” v-7).
Assim podemos ver que na Negritude, o negro, os elementos da terra, enfim, tudo que fora desconsiderado pelo colonizador, é matéria a ser encontrada em suas obras, de maneira a valorizar e desmitificar o negro e sua cultura.
Em contra partida, encontramos, nos dias de hoje, obras, na qual o negro é colocado em destaque, apresentando, também, um tom reivindicatório, com elementos de denúncia social, denúncia da discriminação, onde se busca através da exposição destes fatos a conscientização da população, no intuito de trazer a condição do negro, na sociedade atual, para um debate mais amplo. Para tanto, trazemos a letra de uma música de um grupo carioca, chamado Farofa Carioca, para que possamos identificar essas características.

A Carne

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos

A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que fez e que faz história pra caralho
Segurando esse país no braço meu irmão
O gado aqui não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador é lento
Mas muito bem intencionado
Esse país vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado
E mesmo assim ainda guarda o direito
De algum antepassado da cor
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar bravamente por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar...

(Álbum Moro no Brasil)

Na obra apresentada encontramos diversos elementos semelhantes ao poema da autora moçambicana, já que percebemos, nitidamente, um caráter de denúncia social, e um forte apelo emocional nesta letra. Vemos que a condição do negro é exposta de forma a mostrar a indignação e a revolta do autor diante do que o negro é submetido nos dias de hoje. Percebemos que há a preocupação de explicitar a assimilação, por parte dos negros, da cultura dominante (“e o cabelo esticado” v-21), mas que muitos estão conscientes da sua condição e buscam lutar por melhorias (“E mesmo assim ainda guarda o direito/De algum antepassado da cor/Brigar por justiça e por respeito” v-22,23,24).
Com isso, constatamos que, tanto no poema, quanto na letra da música, o negro é colocado em destaque, denunciando suas condições de vida sofrida, e a partir da arte desencadeando um movimento de luta.

* Marcos Fiuza
Poeta, professor e pós-graduando em Literatura portuguesa e literaturas africanas de língua portuguesa - UFRJ mvfiuza@yahoo.com.br