NICOTINA
por Guilherme Tolomei


“Então, você é o navalha?”
O sujeito é gordo e está de terno.
“Sim”, respondo.
“Você não tem cara de matador de aluguel”
“È que eu esqueci a plaquinha com a indicação dos meus serviços. Geralmente, ando com ela pendurada no pescoço, pras pessoas saberem o que eu faço”
Ele não ri, parece nervoso. Talvez não estivesse satisfeito em lidar pessoalmente comigo. É incomodo ver a escória, sem o controle remoto da televisão por perto.
“Desculpe, não foi isso que eu quis dizer”
Acendo um cigarro.
Ele estaciona o carro ao lado do bar da Lurdes, na Lapa. Sempre gostei de fechar negócio em espeluncas sujas.
“Você sempre vem com seus ...”
“Clientes”
“Você sempre vem com seus clientes a esse lugar?”
“Algum problema?”
“Só acho perigoso”
“Não há perigo algum. Aqui os ouvidos são como os ralos dos banheiros”
“De qualquer modo, você sabe que eu tenho uma reputação considerável”
O nome dele é Márcio Albuquerque, um rico economista que recebeu muito dinheiro brincando com números na bolsa de valores. Estudou em uma das melhores faculdades da Inglaterra e, logo em seguida, casou-se. Ele é um pai dedicado, um profissional competente e um cidadão exemplar, inclusive, participa da campanha contra a violência nas ruas. Enfim, o pior tipo de pessoa.
“Fica tranqüilo, doutor. Ninguém vai notar nossa presença. Por aqui passam advogados, traficantes, putas, empresários, atrizes. Dentro do esgoto, a cor do rato pouco importa pros outros ratos”
Acendo um cigarro
“Preferia falar com você pelo telefone”
“Ta cheio de escuta por aí.”
O homem não pára de transpirar.
“Muito bem. Você sabe porque eu quero matar uma pessoa?”
“Não sei”
Pouco me importa o motivo que leva uma pessoa a matar outra. Entretanto, na maioria das vezes, ela gosta de ficar esmiuçando detalhes sobre as razões da escolha. Se cobrasse por hora de consulta, estaria rico.
“Minha mulher se chama Clara Albuquerque. Nos conhecemos quando ela trabalhava em uma loja de perfumes em Copacabana. A primeira coisa que me chamou atenção nela foi algo que eu jamais havia observado em outras mulheres: a tristeza.”
Tento fingir interesse.
“Não era uma tristeza de liquidação que todos compram em datas infelizes. Era alguma coisa diferente que se misturava aos olhos e sorrisos dela. Aquilo me arrebatou de uma maneira profunda. Estava completamente fascinado.”
Ele pede uma bebida. Eu acendo um cigarro.
“Não demorou muito para que nos casássemos. Nossa festa de casamento foi no Copacabana Palace. Você já esteve alguma vez lá?”.
Eu sou feio e sujo. Você acha que eu estive alguma vez lá, doutor?
“Já”, minto
“Enfim, não quero me alongar com minúcias. Em pouco tempo me tornei o monstro que agora sou. Humilhei minha esposa de todos os modos. Não que quisesse intencionalmente, mas...”.
Faz uma pausa.
“Tive casos muitas mulheres que conviviam conosco, mesmo sabendo que mais tarde ela descobriria. Relacionei-me com várias de suas amigas em nosso apartamento. Sempre fui um marido ausente, nas datas que as pessoas dizem serem especiais. Menti, simulei e omiti. Ela se vingava ficando cada vez mais triste, agüentando tudo calada”
“Sei”
“Todos dias ao me levantar, sou torturado com aquele rosto soturno, aquela tez lúgubre. Aquilo que antes era uma dádiva, tornou-se uma maldição”
“Então, você quer que eu a mate?”
O sujeito não me dá atenção, parece falar consigo próprio.
“E, apesar de tudo, sei que ela me ama. Isso faz com que as coisas tornem-se mais terríveis. Tenho que acabar como o sofrimento daquele anjo. Certa vez, um autor chamado Eurípides disse que os homens consideram o amor uma doença. Você acha isso estranho?”
“Pouco importa”
“Sabe, esse é o tipo de mulher que nasceu pobre, dentro de uma casa humilde. É incapaz de fazer mal a quem quer que seja”
“Pra mim pobre e rico são todos a mesma coisa. Ninguém vale nada!”
“Mas chega dessa história. Quero saber como é a sua maneira de fazer o serviço?”
“Dou um tiro por trás, de tal forma que a vítima não saiba que vai morrer. Não quero carregar olhos de misericórdia dentro da minha cabeça. Uso uma nove com silenciador.”
“Não há possibilidade de descobrirem, não é?”
Ele me faz muitas perguntas. Só falta me querer saber porque me tornei matador de aluguel.
“A possibilidade é muito pequena. Geralmente, faço tudo parecer um roubo. Isso despista a polícia.”
“Ótimo. Precisamos agora combinar o pagamento”
Escrevo o valor em papelzinho e entrego a ele.
“Deposito quando você já tiver feito o trabalho”
“Não, doutor. Só trabalho recebendo adiantado”
“Quantias pequenas eu guardo em um cofre, dentro do apartamento onde realizo encontros amorosos. Podemos pegar agora”
Com o dinheiro que eu pedi, dá pra passar o resto do ano sem fazer mais nada. O que ele deve achar que é uma quantia grande?
“Está certo”
“Só mais uma coisa. Tenho curiosidade em saber porque você se tornou matador de aluguel”
“Porque eu nunca aprendi a tocar saxofone”
Atravessamos toda a zona sul até chegarmos em um prédio antigo no Leblon. Já havia passado das duas horas da manhã, e naquela madrugada fria de junho as ruas estavam desertas.
Subimos até o oitavo andar.
“Por favor, eu só peço pra você não fume aqui. Sabe como é, algumas mulheres não gostam desse cheiro impregnado pelos cantos”
“Tudo bem”
O apartamento não é grande. Na sala só há um sofá e uma mesa com duas cadeiras. As cortinas grossas estão fechadas.
“Eu vou ao quarto pegar o dinheiro”
Tento assumir uma fisionomia neutra, mas não consigo. Embora tudo transcorra como o planejado, estou nervoso. Aliás, eu sempre fico nervoso quando tenho que matar qualquer um, mesmo com minha experiência.
O sujeito retorna com um envelope transparente. Não posso me precipitar, tenho que esperar o momento certo. Talvez seja essa a única oportunidade de estar junto com ele, sem mais ninguém.
“Você quer que eu conte?”
“Sim”, respondo
Ele joga todo o dinheiro no sofá, depois, com a cabeça abaixada, começa a falar números em voz alta. Está distraído. Aproveito o momento e retiro a arma do casaco. Atiro na nuca, é o suficiente. O corpo cai no chão e, ao lado, começa a se formar uma poça de sangue. O trabalho está feito.
Ele jamais desconfiaria que a Dra. Clara Albuquerque me contratou, há duas semanas, pra matar o próprio marido.
Antes de sair, acendo um cigarro. Acho que agora ninguém vai mais se importar.

2 Comments:

At julho 07, 2006 12:02 AM, Anonymous Anônimo said...

e eu tava o tempo todo achando q ele contratou o cara p/ matar a ele mesmo...tipo suicídio através da mão alheia!


boa história!

 
At julho 15, 2006 8:02 PM, Blogger Julio Cesar Corrêa said...

A-hã, então aquele conto deu frutos? Tá legal
gd ab

 

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